O ano de 2020 chegou como um desafio em nossas vidas. Ou mudamos ou morremos. Não estou me referindo só ao fato da quarentena imposta para a prevenção do Coronavírus. Mas essa reclusão de todos em suas casas está provocando uma crise jamais vista no mundo. Uma verdadeira ‘revelação’ de realidades até então disfarçadas por um estilo de vida inconseqüente, por relacionamentos superficiais, pela indiferença social e por uma economia consumista galopante, que ameaçava até mesmo os recursos naturais de nosso planeta. Quer dizer, todos nós agíamos como zumbis num mundo governado por forças políticas invisíveis, que nos envolviam como teias de uma aranha mortífera e nos aprisionavam para sugar nosso sangue.
Quando o apóstolo João teve a visão do Apocalipse, na longínqua ilha de Patmos, no mar Egeu, ele recebeu uma revelação divina de coisas que até então permaneciam secretas e desconhecidas, de estranhas profecias do que ira ocorrer no futuro. Costuma-se falar em ‘fim de mundo’ como sinônimo de Apocalipse, o que não é de todo errado se entendermos que uma ‘revelação’ pode trazer mudanças que vão gerar uma nova visão de mundo. É exatamente o que está acontecendo agora. A proximidade da morte, sentir a morte rondando nossas casas, ver a morte ameaçando levar nossos parentes e pessoas queridas, prenuncia, na verdade, o fim de um mundo e de um estilo de viver.
Talvez haja uma verdade oculta se revelando nesse momento e esta verdade poderá ser a libertação de nossa cultura egocêntrica e inconseqüente. Diante do minúsculo Coronavírus as vozes do poderio econômico mundial se calam, os bombardeios em países inimigos silenciam, a poluição sonora e química estanca, congestionamentos nas grandes cidades desaparecem, e as pessoas se confrontam com seus dilemas, seus conflitos pessoais, seus dramas conjugais, sua solidão. A vida tem de ser repensada. O seu vizinho pode estar morrendo de fome. O idoso pode estar abandonado num canto de sua casa. As crianças, habituadas a um ritmo acelerado, podem estar entediadas. A internet começa a ficar saturada e falha. O futuro se torna assustador. Esse é o momento do Apocalipse. Hora da Revelação. Revelação do quê?
Há algo muito importante a se aprender com a morte. O medo da morte surge inesperadamente, do nada, e destrói todas as nossas certezas. Num segundo, tudo aquilo que construímos com tanto zelo cai por terra, e nos vemos dentro de um redemoinho que desfaz arranjos, planos, metas e ilusões. Nossos pensamentos viram poeira sob a força devastadora de sua Presença. É sempre assim que ela chega, como um Apocalipse.
Contudo, a morte não é uma estranha. Sempre esteve conosco, e mesmo sem saber convivemos com ela diariamente, na renovação de nossas células, na deterioração de nossos neurônios, na aniquilação e renovação de todas as partículas subatômicas do universo. O motivo de nosso espanto é que quase sempre esquecemos que a vida é um processo sem fim de criação e aniquilação, matéria transformando-se em energia, energia transformando-se em matéria...
As formas que criamos através de nossa mente são todas elas transitórias, inclusive nós mesmos, e com elas engendramos uma realidade sem fim, criada e recriada a cada instante por nossos pensamentos. Essa é a dança das formas transitórias da existência. Então, porque dói tanto quando nos deparamos com a morte?
Por que nós, seres humanos, queremos aquilo que é duradouro, ansiamos pela eternidade, buscamos certezas e estabilidades. Tentamos segurar nas mãos o fluxo do vento, conter o movimento das águas, aprisionar o passado em nossas lembranças e prever um futuro que não chegou ainda. Por isso nossas memórias nos são tão caras. Elas são o tempo aprisionado.
Precisamos aprender a ver a morte como uma grande Mestra. Ela nos coloca face a face com o mistério da impermanência, e nos lembra que tudo é transitório e mutável como um sonho. Nós estamos aqui hoje, podemos não estar mais nesse mundo daqui a um minuto. O Coronavírus pode nos levar a qualquer momento, por mais cuidados que tenhamos. Não existem certezas, apenas crenças. Não existe o tempo, apenas o momento presente.
Qual é o aprendizado de tudo isso? Qual a urgência desse ensinamento para o mundo? Talvez seja apenas isso: precisamos aprender em vida a existir no Aqui e no Agora. Essa é a dimensão da consciência, é a grande conexão com o momento sagrado do agora, que a Revelação do Coronavírus está trazendo para todos nós. No silêncio e na solidão de nossa quarentena, que possamos aprender a dançar com Shiva, o deus da destruição e da regeneração, a grande dança cósmica da existência.
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