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A ALMA DA TERRA: MULHER E ECOLOGIA

No início era o Caos, disse o poeta Hesíodo, no séc.VIII a.C.

Inefável, puro mistério, do Caos surge a primeira manifestação de uma base sólida, material, geradora de todas as coisas: Gaia, a mãe-terra, de onde nasceriam as forças titânicas que iriam povoar o mundo. Os mitos falam de deuses no início das eras, a ciência fala de processos físico-químicos. Nomes diferentes para o mesmo mistério da Vida.


Mas, nada disso muda o fato de que nossa mãe Terra é uma venerável anciã de 4,5 bilhões de anos. Durante todo esse tempo -- inimaginável para nossas pequenas mentes -- a Vida foi evoluindo em formas cada vez mais complexas, até chegar a nós, seres humanos. Mas, como se deu isso?


Na antiguidade, todas as culturas reverenciavam a Terra como a uma deusa. Havia a deusa Nut para os egípcios, Deméter para os gregos, Ishtar para os babilônios. Depois da grande revolução da agricultura, o princípio mais festejado era a abundância e a fertilidade da terra, a colheita, a fartura dos alimentos. Por isso reverenciavam a Grande Mãe como a representação simbólica da Vida. Esta concepção é tão arquetípica que os índios norte-americanos da tribo Wanapum, em pleno século XIX, se recusaram a preparar a terra para o cultivo, dizendo: “Devo pegar um facão e rasgar o seio de minha mãe?”


Mas, em algum momento da história, uma facção da humanidade se revoltou contra essa ideia e decidiu cortar o cordão umbilical que a ligava ao princípio feminino da Terra. Era meados do século dezessete. Um intenso movimento cultural começou a ganhar força e poder com argumentos convincentes e promissores. Nasciam os filósofos da ciência. Por princípio eles recusavam veementemente a idéia de seus antepassados de que tudo na natureza era vivo e inteligente, e demonstravam leis que provavam ser o mundo uma grande máquina que funcionava mecanicamente. Bastava saber manejar seus controles e ela agia conforme a vontade do maquinista. E bem depressa esqueceram a “alma” da natureza, sua inteligência e finalidade. A idéia de que a Terra possuía uma alma foi abandonada como ingênua, mística, primitiva. Gaia deixava de ser sagrada. Como uma coisa inerte e sem vida própria, passou a ser explorada, consumida, usada, devassada, vendida.


Será que a Terra tem uma alma? Ou será que a alma da Terra é a nossa própria alma? Não temos nossas memórias arquetípicas inspirando os símbolos com os quais damos nomes e formas para a Terra? De onde nascem essas memórias?


A idéia de que a Terra é um ser vivo, tem encontrado, nos últimos tempos, ressonâncias no espírito de muitas pessoas, até mesmo entre os acadêmicos. O problema é que é muito difícil definir o que é ‘vida’. Os antigos chamavam de ‘enteléquia’ ao princípio organizador dos organismos vivos. Pois, foi justamente esse princípio que James Lovelock descobriu, quando propôs a sua ‘hipótese Gaia”. Segundo ele, a Terra é uma entidade auto-reguladora, e desenvolve uma interação complexa entre todos os seus elementos físico-químicos, tornando possível a manutenção do eco-sistema no planeta.


Mas, não temos a intenção de desenvolver essa linha de raciocínio. Eu queria apenas lembrar que existe uma filosofia da natureza que concebe o nosso planeta como um ser vivo. Mais ainda: como um ser semelhante às mães humanas, com todas as suas emoções ambivalentes: ela pode ser bela, benevolente, generosa, mas também selvagem, destrutiva, desordenada, caótica, opressiva.


Talvez por isso a idéia de uma natureza como um sistema inanimado e mecânico é tão mais confortável. A metáfora da natureza como uma ‘máquina’ nos deu a ilusão de que estávamos no controle, que podíamos explorar seu sangue, destruir suas árvores, cortar suas montanhas, secar seus rios. Mas esta metáfora está se revelando mentirosa. A Terra não é uma máquina, e ela está nos dizendo isso com todas as letras.


Eu queria lembrar que a percepção da Terra como Gaia ou Grande Mãe sempre fez parte da história humana. Até hoje temos essa concepção presente nas palavras que falamos. As próprias palavras que designam a natureza nas línguas européias são femininas – por exemplo, phusis, em grego e natura, em latim. A palavra natura significa literalmente ‘nascimento’. A palavra phusis vem da raiz phu, que também está associada a nascimento. Não parece muito significativo que tanto os termos ‘física’ e ‘físico’, assim como’ natureza’ e ‘natural’ tem sua origem no processo de dar à luz, de criar e de proteger?


Então, eu vou fazer uso de minha liberdade poética e vou propor a metáfora da Terra como uma Grande Mãe, metáfora esta defendida pela mais nova das ciências, a filosofia holística. E vou terminar invocando um trecho do poema Metamorfoses, do grande poeta romano Ovídio:


“E a Terra era serena. Não a fustigava a enxada nem a relha, e em seu seio Ela gerava tudo que os homens precisavam, e esses homens eram felizes.”

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