Certa vez, num congresso de mulheres camponesas, em Garanhuns, estado de Pernambuco, uma mulher madura, forte e robusta, de gestos rudes e mãos calejadas pela enxada – sua companheira diária de uma luta sem glória -- disse um frase que jamais esquecerei. Corria a década de 70, e estávamos no auge do movimento feminista, com suas reivindicações apaixonadas por liberdade, trabalho e justiça social. Havíamos conseguido reunir naquele congresso uma matilha de mulheres-lobas ferozes, cada qual uivando no seu dialeto o justo clamor por direitos e oportunidades iguais. Havia artistas, intelectuais, camponesas, domésticas, donas de casa, todas guerreiras amazonas no fundo de suas naturezas.
De repente aquela frase caiu feito um raio, desvelando por detrás daquela face dura de mulher guerreira, uma menina frágil e assustada. Ela olhou fundo para cada uma de nós e disse : « Eu tenho 50 anos, já enterrei dois maridos, já criei 10 filhos... e não me criei ainda ».
Suas palavras ressoaram nas entranhas do coração de cada mulher ali presente. Porque todas sabíamos que, na luta pela sobrevivência, sempre temos uma reserva de força e coragem que não sabemos de onde vem. Aquela camponesa, que com certeza, era o esteio de sua família, e tinha uma luta diária, anônima e silenciosa -- como é quase sempre com todas as mulheres -- passaria ao largo da história e continuaria sendo uma guerreira anônima e desconhecida, se não fosse o seu depoimento ali, naquele momento.
Aquele congresso, aquele encontro mágico de guerreiras de todos os cantos do Brasil, ira mudar a história de nosso país, a partir do testemunho do cotidiano de muitas outras mulheres trabalhadoras rurais ali presentes. Muitas mudanças importantes foram propostas naquele dia, e muitos direitos seriam conquistados.
Havia militantes e intelectuais fazendo discursos inflamados. Mas não foram esses que fizeram a diferença. Foi a fala simples e emocionada de uma mulher sem cultura nem instrução que se desvelou e, ao fazer isto, nos desvelou a todas. Foi o falar-de-si-mesma, com a maior simplicidade, que uma outra dimensão se abriu sobre nossas cabeças e pudemos compreender que, ao dedicar toda a nossa vida a cuidar dos outros, nós nos esquecemos de cuidar de nós mesmas. E pouco a pouco vamos ficando para trás. Nunca sobra tempo para pensar em nossos sonhos, em nossa vida, em nosso futuro. Nem que temos direito a uma situação mais digna na família, na sociedade...
A fala da camponesa calou fundo em todas, porque ela expressava todo o universo feminino, independente da classe social. Não há mulher que não esconda o seu desejo. Não há mulher que ouse expressá-lo, lutar por ele. Sempre tem coisas mais importantes para fazer. Com o tempo, isso vira uma dor sem solução, uma tristeza sem nome, que só mesmo uma doença das brabas consegue expressar. Em toda família existe uma Amélia que segura a barra de todos, que se mantém firme quando tudo em volta está desabando. São as verdadeiras guerreiras da tribo, embora o cacique é que leve o nome.
Mas, chega uma hora em que ela pára, olha para dentro de si mesma e pergunta : « E eu? Onde é que eu fico nisso tudo? »
O mundo está repleto dessas heroínas de sexo ‘frágil’, anônimas, soldados da reserva, sempre a serviço do desejo dos outros. Inconscientes da importância de seu papel social, elas calam seus anseios e se acomodam ao rebanho que segue, cego, para lugar nenhum.
Seu despertar é sempre um processo difícil e complexo. Porque nessa caminhada foram perdendo muitas referências que fazem-nas sentir-se reconhecidas e valorizadas. A busca por uma identidade feminina é um mergulho em águas muito profundas e turvas, lá onde a nossa memória não alcança mais. Foram tantos anos, tantos séculos, tantos milênios, que já não lembramos mais de onde viemos nem sabemos de nossa origem.
Por isso existem as lobas e são elas que nos ensinam. É preciso olhar atentamente para o espelho da Mãe-Terra, e voltar a aprender com os bichos do mato a nossa ferocidade natural, recitar todos os meses a lei dos ciclos da lua com o nosso corpo, e reaprender a farejar com a intuição dos predadores. Só assim pode existir alguma esperança de que um dia, as mulheres vão saber como se defender da sanha daqueles predadores que ainda querem explorar o seu corpo, dominar a sua alma, dirigir o seu destino.
Os congressos de mulheres, tão em voga nos anos 80, eram momentos mágicos, em que as mulheres despertavam de seu sono milenário, descobriam que não estavam sozinhas, aprendiam a farejar em volta com as narinas bem abertas e decidiam abandonar o rebanho para reencontrar sua matilha. Se no rebanho, elas foram apenas ovelhas submissas, na matilha, elas reaprendem a arte da liderança. Assim começou a historia das mulheres que hoje uivam como as lobas.
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